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Ambulatório do Hias é referência no tratamento de crianças com doença falciforme; patologia ainda é pouco conhecida

Conviver com uma doença crônica, responsável por crises agudas e episódios de internação, é um grande desafio tanto para pacientes, quanto para familiares que acompanham essa rotina exaustiva com frequentes idas aos hospitais. Contudo, lidar com esse processo pode ser menos desgastante com o acompanhamento adequado e o conhecimento sobre a patologia e as formas de tratamento. É o caso da anemia falciforme, doença hereditária mais comum no Brasil, mas ainda pouco conhecida pelos brasileiros, caracterizada por uma mutação genética que causa alteração físico-química nos glóbulos vermelhos (hemácias).

Segundo estudo inédito realizado pela então Ibope Inteligência em maio de 2020, intitulado “Percepção dos brasileiros sobre a Doença Falciforme”, 47% da população nunca ouviu falar sobre essa patologia que, segundo estimativas, tem cerca de três mil novos casos diagnosticados por ano no País.

Gilderlane Nobre e Lyslane Almeida, mães de pacientes com anemia falciforme acompanhadas no Hospital Infantil Albert Sabin (Hias), unidade da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), são duas dessas pessoas que não tinham conhecimento algum sobre a doença até receberem o diagnóstico das filhas.“Quando me falaram no posto de saúde onde minha filha fez o teste do pezinho que ela provavelmente tinha essa doença, fiquei com muito medo, aí pesquisei na Internet e fiquei ainda mais assustada quando vi tudo que a anemia falciforme pode causar, como as crises de dores e a possibilidade de ser preciso fazer transfusões de sangue”, relata Lyslane, mãe da pequena Lizzie Almeida, de seis meses.

Lizzie foi atendida pela primeira vez no Hias, unidade referência no tratamento da doença em crianças e adolescentes, em janeiro deste ano e, desde então, vem sendo acompanhada pela equipe multidisciplinar do hospital. “Logo no primeiro atendimento no Albert Sabin, a médica explicou a doença, o tratamento e disse que minha filha precisaria ser acompanhada. Até um ano, temos que vir todo mês para ela ser consultada. Apesar do susto, fico mais tranquila porque a Lizzie é bem saudável, não dá nem pra saber que ela tem a anemia falciforme. Mesmo assim, estou cumprindo direitinho o que a médica recomendou, dando as medicações e indo para as consultas”.

De acordo com Márcia Lima Verde, hematologista pediátrica responsável pelo ambulatório do Hias, esse envolvimento e compromisso da família com o tratamento são fundamentais para prevenir a agudização da enfermidade. “Apesar de ser uma doença grave e crônica, é possível que o paciente com anemia falciforme tenha uma vida praticamente normal, mas, para isso, são necessários o acompanhamento e a adesão ao tratamento, que podem dar uma qualidade de vida melhor para os falcêmicos”.

Conscientização

Neste sábado, 19 de junho, é celebrado o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme. A data foi instituída em 2008 pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de informar a população sobre a patologia, conscientizar a respeito da importância da detecção precoce e diminuir as taxas de morbidade e mortalidade da doença, que, apesar de rara, é a disfunção genética mais comum no Brasil.

Sintomas e diagnóstico

O principal sintoma da anemia falciforme são as crises de dor, seja nos membros, principalmente ósseas, no abdômen ou no tórax. Entretanto, a doença pode se manifestar de forma diferente em cada indivíduo. Os sintomas podem ser leves, mas outros mais graves também podem ser observados, como o sequestro do sangue pelo baço. Em alguns casos, o baço dos falcêmicos pode aumentar rapidamente por absorver todo o sangue, podendo levar o paciente ao óbito pela falta do líquido nos outros órgãos, como o cérebro e o coração.

Contudo, a doença pode ser detectada nos primeiros dias de vida da criança, por meio da triagem neonatal (teste do pezinho), e confirmada por meio do exame de eletroforese de hemoglobina, antes mesmo de qualquer sintoma se apresentar. Esse diagnóstico precoce é fundamental para que as crianças possam iniciar o quanto antes o tratamento, evitando crises mais severas e complicações.

No caso da Maria Clara Nobre, hoje com 13 anos, a detecção da anemia falciforme ocorreu somente após uma crise aguda da doença, que quase levou sua vida. A patologia não foi identificada no teste do pezinho. Ela não apresentava nenhum sintoma até os três anos de idade, quando um exame de rotina identificou equivocadamente uma anemia comum, sendo tratada com sulfato ferroso, o que é bastante nocivo aos falcêmicos. “Notei minha filha muito molinha, vomitou bastante, ficou arroxeada e desmaiou. Pensei que ela tinha morrido. Levei pra um hospital e lá me mandaram ir pro Sabin, onde ela foi reanimada e recebeu transfusão, pois estava somente com 1,9% de sangue no corpo”, lembra Gilderlane Nobre.

Referência no tratamento

Após identificado que a criança possui o gene da doença falciforme, por meio do teste do pezinho, ela é referenciada para o Hospital Infantil Albert Sabin, onde será acompanhada pela equipe multidisciplinar da unidade.

“No ambulatório, temos enfermeiras responsáveis por fazer o acolhimento dessas crianças, treinadas para avaliar o teste de pezinho, que encaminham os pacientes para serem assistidas aqui no hospital. Com seis meses, nós solicitamos o teste da eletroforese de hemoglobina e, após a confirmação, damos início ao tratamento, que deve ser feito pelo resto da vida. Eles são acompanhados aqui no Hias até os 18 anos e, após essa idade, passam a ser tratados no ambulatório do Hemoce”, detalha a hematologista Márcia Lima Verde.

Ao longo do desenvolvimento das crianças com anemia falciforme, alguns medicamentos e procedimentos são aliados importantes no controle de infecções, crises de dores e na detecção precoce de possíveis complicações. Dos seis meses aos cinco anos, as crianças precisam fazer uso da penicilina oral, que é fornecida pela Sesa para prevenir pneumonias por germes capsulados, como o pneumococo. A partir dos dois anos, conforme gravidade da evolução do quadro do paciente, é recomendada a hidroxiureia, medicação disponibilizada pelo Estado, que é o que existe de mais efetivo para o tratamento, pois ela bloqueia as inflamações causadas pela doença.

A hidroxiureia tem sido essencial no tratamento da Maria Clara para evitar as frequentes internações pelas quais ela era submetida. “Está com cinco anos que minha filha não tem crise, mas houve uma época em que a gente praticamente morava no hospital, era uma transfusão atrás da outra. Esse remédio é uma bênção para essas crianças, foi o único medicamento que ela tomou que fez efeito de verdade”, afirma. “Há dois anos minha filha teve uma crise de dor, mas a hemoglobina não caiu por causa da hidroxiureia. Nós conseguimos o medicamento aqui no Hias. A médica nos dá a receita e pegamos na farmácia ambulatorial, pois é uma medicação cara e importante para o tratamento das crianças com anemia falciforme”, celebra Gilderlane Nobre.

Transfusão de sangue e exame doppler craniano

A transfusão de sangue é um dos procedimentos que também pode ser necessário no tratamento dos falcêmicos, pois contribui para que o paciente não tenha acidentes vasculares cerebrais do tipo isquêmico com frequência, outra complicação da doença. “Para evitar que o paciente tenha AVCs recorrentes, e consequentemente sequelas, eles são colocados em regime de transfusão crônica, em que todo mês a criança vem ao hospital fazer uma transfusão. Aqui no Hias, essa transfusão é feita com todo cuidado, as crianças são fenotipadas e o sangue recebido é o mais compatível possível”, acrescenta Márcia Lima Verde.

Outro importante recurso na prevenção dos AVCs nas crianças com anemia falciforme é o exame doppler craniano, que detecta a velocidade de circulação na artéria cerebral e é capaz de indicar, pelo aumento do fluxo sanguíneo, se a criança poderá ou não ter um AVC isquêmico.

O Hias é o único local no Ceará que realiza o teste. Além desse acompanhamento, as crianças falcêmicas precisam realizar anualmente consultas com oftalmologista, cardiologista, fazer ultrassom de abdômen para checar baço e vesícula, além de visitas ao endocrinologista e neurologista quando se faz necessário, pois a enfermidade pode afetar todo o organismo. “Atualmente, aqui no Hias, o índice de agravamento dos doentes é muito baixo em razão de toda essa estrutura que foi montada para proporcionar às crianças.